O que é budismo? O Sutra de Lótus dá a resposta mais clara possível — é uma filosofia de vida. Mais especificamente, o budismo ensina como purificar a vida, desenvolver a sabedoria para compreender a verdade da vida e a estabelecer a verdadeira independência.
No milênio que se seguiu à morte do Buda Sakyamuni, seus ensinos foram registrados e transmitidos, dando surgimento a uma confusa série de sutras. Porém, quando se reconhece que o Sutra de Lótus é o âmago de todos eles, compreende-se que juntos formam o que é na verdade uma volumosa elucidação da filosofia da vida. No entanto, os sutras budistas apresentam individualmente muitos mistérios aparentes.
Alguns propõem, por exemplo, regras de disciplina monástica que traçam rigorosamente como deve ser o comportamento correto ao passo que outros contam histórias de um passado inimaginavelmente distante como se tivessem acontecido ontem. De acordo com alguns sutras, incontáveis budas e bodhisattvas do distante passado, e também dos confins do Universo, reúnem-se onde Sakyamuni está expondo seus ensinos aos seus discípulos.
Outros também descrevem um certo mundo que fica a dez milhões de anos luz da Terra de forma tão clara como se fosse projetado em uma tela, ou sustentam que um bodhisattva foi às entranhas da terra para ver sua mãe em uma existência passada. Muitas outras parábolas e acontecimentos inconcebíveis são descritos nos sutras. O grande número de escrituras budistas pregadas por Sakyamuni são cheias de mistérios, como se fossem uma grande selva sem trilhas.
Vagando por essa densa floresta das doutrinas budistas, muitos adeptos ficaram completamente confusos. Eles eram forçados a escolherem um sutra, apesar de terem apenas uma informação parcial e não soubessem exatamente onde estavam ou para onde iam. É por isso que surgiu um grande número de interpretações conflitantes e escolas à mesma época em que os ensinos de Sakyamuni se propagaram na Índia, no Tibete, na China, no Japão, em Mianmar e na Tailândia — todos países que tiveram contato com o budismo.
No entanto, o próprio Sakyamuni deixou uma indicação para conduzir as pessoas às suas verdadeiras intenções. No Sutra de Lótus e em seu prólogo, o Sutra Muryogui (Sutra dos Infinitos Significados), consta que o Sutra de Lótus revela a verdade máxima da iluminação de Sakyamuni e que é o mais supremo de todos os seus ensinos. Todavia, muitas pessoas desprezavam isso cheias de indiferença, ou talvez por não terem conhecimento, e em conseqüência perdiam-se no meio do caminho.
Em vários períodos da história, eruditos budistas, tais como Nagarjuna, Vasubandhu, Tient’ai e Dengyo, compreenderam que o Sutra de Lótus é o mais profundo de todos os ensinos de Sakyamuni. Eles descobriram que o Sutra de Lótus dava significado a todos os outros. Ele integra as verdades parciais em uma imagem global e todas as doutrinas de Sakyamuni em um sistema filosófico de grande alcance. É isso o que se chama filosofia da vida.
O que então Sakyamuni quis transmitir com o Sutra de Lótus? Sua iluminação foi a compreensão da única verdade subjacente a toda vida. Não apenas Sakyamuni, mas também Sharihotsu, Mahakashyapa e outros discípulos também atingiram a iluminação por meio dessa verdade. Ela foi, e sempre será o único caminho para a iluminação para todos os budas no Universo. Em resumo, as pessoas podem atingir o estado de Buda apenas compreendendo a existência dessa verdade.
Essa verdade é a Lei eterna que existe nas mudanças fenomenais no Universo e permeia a vastidão ilimitada do espaço. É também a Lei fundamental que opera nas profundezas de cada vida. A vida tem uma variedade infinita de manifestações e funções, mas a entidade da Lei da vida permeia todos os fenômenos. As outras escrituras budistas, excetuando-se o Sutra de Lótus, são apenas parciais e dão explicações relativas da Lei fundamental da vida.
O budismo classifica em dez categorias ou estados de existência as condições sempre mutáveis da vida. Este conceito é chamado de Dez Estados da Vida. O Inferno é o estado em que as pessoas são dominadas pelo impulso de destruir e de arruinar a todos, incluindo a si próprias. A Fome é o estado do desejo insaciável, e no estado de Animalidade as ações são direcionadas para a autoconservação e o benefício imediato, faltando qualquer autocontrole. Quando uma pessoa é egoísta e impelida pelo espírito competitivo de dominar, ela está no estado de Ira.
O próximo, Tranqüilidade, é um estado sereno no qual as pessoas controlam seus desejos ou impulsos por meio da razão, e o estado de Alegria é a felicidade que se experimenta da satisfação de um desejo ou de uma luta vitoriosa. Ambos surgem da relação entre a vida e os fatores externos que a rodeiam. Por essa razão, quando o equilíbrio da vida é perturbado, a tranqüilidade e o contentamento inevitavelmente se afundam no estado de Inferno, Fome, Animalidade ou Ira.
A função do budismo é despertar nas pessoas a realidade máxima da vida que se encontra sob os desejos e impulsos para que possam manter conscientemente o equilíbrio na vida. Em alguns casos, as pessoas compreendem essa realidade por meio dos ensinos de seus antecessores e em outros tentam compreendê-la intuitivamente pela observação dos fenômenos naturais. O estado de vida do primeiro grupo é chamado Erudição, e o do segundo, Absorção.
A Erudição e a Absorção surgem quando a pessoa tenta conscientemente compreender a verdade máxima da vida. No entanto, se os esforços forem direcionados apenas para o auto-aprimoramento, qualquer verdade obtida nunca deixará de ser apenas parcial. Cada forma de vida está inseparavelmente ligada a todos os outros seres e coisas no Universo porque a realidade máxima da vida que sustenta todas elas é una com a vida do Universo.
Conseqüentemente, na tentativa de obter uma visão completa e global da verdade da vida, as pessoas devem compreender primeiro que elas não podem existir separadamente dos outros seres vivos e depois devem se identificar com as dores dos outros a ponto de empenharem-se totalmente para atenuarem os sofrimentos daqueles que estão ao seu redor. O nono estado, Bodhisattva, é a expressão da total devoção em ajudar e apoiar os outros e indica uma vida cheia de compaixão. O mais elevado de todos, o estado de Buda, é alcançado quando a pessoa tem sabedoria para compreender a essência da própria vida e da dos outros, que continua em perfeita harmonia com o ritmo do Universo e existe desde o infinito passado até o eterno futuro.
Os outros sutras consideravam os Dez Estados como separados e independentes um do outro, como partes de um todo sem correlação. Não havia uma explicação sistemática dos Dez Estados. Em contraste, graças ao Sutra de Lótus pode-se compreender que cada um dos Dez Estados inclui os outros estados e que uma pessoa tem o potencial para manifestar todos os Dez Estados. Além disso, uma lei universal regula seus aspectos mutáveis. Essa lei, os Dez Fatores da Vida, aplica-se em qualquer momento aos Dez Estados e é comum a cada entidade de vida.
Os Dez Fatores são mencionados no 20 capítulo do Sutra de Lótus, Hoben (Meios), e consistem de Aparência, Natureza, Entidade, Poder, Influência, Causa Interna, Relação, Efeito Latente, Efeito Manifesto e Consistência do Início ao Fim de todos os nove fatores. Enquanto os Dez Estados expressam as diferenças entre os fenômenos da vida, os Dez Fatores descrevem o modelo de existência comum a todos os fenômenos mutáveis.
A vida se manifesta de maneiras diversas e dessa forma revela seu caráter distintivo. Pelo fato de cada forma de vida ter suas próprias qualidades únicas, os dois conceitos dos Dez Estados e dos Dez Fatores não são suficientes para compreender a vida em sua totalidade.
Os Três Domínios da Individualização da Vida, que são também expostos no Sutra de Lótus, são necessários para uma total expressão da vida. Eles são Os Cinco Componentes, o Ambiente Social e o Ambiente Natural. No Ambiente Natural, como o ar, a terra, o mar, os rios e os raios do sol, os seres vivos de uma espécie em particular ajudam-se uns aos outros e cooperam com outras formas de vida na luta pela sobrevivência. À medida que crescem, os seres vivos influenciam e incorporam o ambiente ao seu redor tanto física como espiritualmente. Eles adquirem distinções de acordo com as peculiaridades de seu ambiente. A teoria dos Três Domínios foi exposta para uma análise e compreensão da individualização da vida.
As doutrinas anteriores, reveladas pelos sutras de Sakyamuni, nem sempre são escritas em linguagem clara o bastante para que todas as pessoas compreendam. Foi preciso um filósofo e mestre do budismo tal como o Grande Mestre Tient’ai (Chih-i) da China para compreender esses princípios por meio de um amplo estudo e um profundo discernimento para depois incorporá-los no sistema de filosofia que foi chamado de Itinen Sanzen (Três Mil Mundos em Um Único Momento da Vida).
Suas realizações tiveram grande influência sobre o pensamento budista na China e no Japão. No entanto, o Budismo de Tient’ai era muito difícil de ser transmitido para a maioria das pessoas. Para compreendê-lo, era preciso uma inteligência incomum e também um conhecimento geral das escrituras budistas e de teorias formuladas por eruditos tais como Nagarjuna. Em conseqüência disso, a filosofia de Tient’ai, apesar de revelar profundamente o significado da vida, despertou pouco interesse no budismo por parte das pessoas.
Muitas pessoas, incluindo até mesmo os monges sábios, ficaram confusas com as doutrinas alegóricas que descreviam os poderes ocultos dos budas e bodhisattvas. Eles ficaram tão desorientados que apenas podiam considerar o budismo com uma reverência cega. Alguns criaram esperanças de salvação por meio de complicados rituais esotéricos budistas. Para eles, o budismo era um barco para tirá-los completamente das duras realidades dos sofrimentos mundanos e levá-los para além das praias do nirvana.
Os verdadeiros ensinos do budismo, no entanto, não são escapistas nem relativos ao além-túmulo. Um conceito fundamental é a idéia de que compreendendo a verdade máxima inerente em nossa própria vida podemos atuar destemida e vigorosamente e compreender ao mesmo tempo que toda vida, incluindo a nossa, é sagrada. É lamentável que esse espírito fundamental tenha-se perdido em uma fraseologia confusa. Mesmo hoje ele continua obscuro para a grande maioria das pessoas em todo o mundo.
Nitiren Daishonin, que nasceu no Japão em 1222, expressou de forma concreta e prática a filosofia budista que Sakyamuni ensinou e Tient’ai iluminou. Ela foi portanto colocada na berlinda e tornou-se relevante para a vida diária das pessoas. Sua realização foi como a de alguém que apresenta uma complexa teoria científica em aplicações práticas. Foi como uma obra de arte que exprime o nobre espírito do artista e a filosofia de sua época, dando-lhe o poder de afetar diretamente e comover as pessoas que a encontram.
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